terça-feira, 7 de agosto de 2007

A autonomia universitária e a escolha de reitores


A autonomia universitária e a escolha de reitores

A autonomia constitui um dos pontos mais importantes da discussão sobre a reforma universitária no Brasil. Ao mesmo tempo em que é considerada uma condição de existência da própria universidade, sua regulamentação vem sendo alvo de muitas divergências entre os diversos setores da comunidade acadêmica. O atual debate remete à aprovação do artigo 207 da Constituição Brasileira de 1988, que determina que as universidades tenham autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Um dos principais problemas em torno dessa questão é que a diretriz constitucional não estabelece se esse princípio é auto-regulável ou não, ou seja, se pode variar de acordo com cada universidade.

“A polêmica que havia em 1988 era se a expressão na forma da lei seria acrescentada, depois da palavra autonomia, ou se deixaria apenas a definição genérica do princípio”, explica a socióloga Maria Francisca Coelho, professora da Universidade de Brasília (UnB). Ganhou a versão sem o acréscimo e, até hoje, muitos defendem a autonomia plena, o que, na prática, tem significado o emperramento das atividades universitárias ou o uso indevido desse princípio para não resolver os problemas da instituição. “A autonomia como está na Constituição virou uma faca de dois gumes: serve para justificar o status quo e para não mudá-lo”, afirma Coelho.

Um dos capítulos mais importantes dessa discussão sobre autonomia ocorreu no contexto das discussões sobre a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sancionada em 1996. A LDB acabou restringindo o alcance da autonomia ao definir que “as universidades mantidas pelo poder público gozarão, na forma da lei, de estatuto jurídico especial para atender às peculiaridades de sua estrutura, organização e financiamento pelo poder público, assim como dos seus planos de carreira e do regime jurídico do seu pessoal”. Na prática, isso acabou por fortalecer a proposta de mudança constitucional do artigo 207, apontando para a necessidade de uma lei complementar à norma constitucional. Na ocasião, a opinião das entidades estudantis e de docentes era que a definição constitucional era boa e não precisava ser alterada. Por parte do governo, era insuficiente para dar conta da diversidade do sistema de ensino superior e das diferenciações de cada instituição.

Na opinião de Roberto Leher, ex-presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes), o acréscimo da expressão na forma de lei representa uma ameaça à autonomia, na medida em que ela passaria a ser regida por uma legislação infraconstitucional (artigos constitucionais sujeitos a regulamentação) que, segundo ele, delimita seu alcance: “Nós entendemos que a regulamentação cerceia a autonomia universitária em relação ao que está já previsto na Constituição”. Leher ressalta que essa autonomia deve ser exercida com o Estado assumindo as suas responsabilidades de finaciamento: “O Estado precisa voltar a ter responsabilidade na manutenção e no desenvolvimento das instituições públicas. Não queremos a autonomia neoliberal para a universidade captar seus recursos no mercado. Queremos autonomia didático-científica, de gestão financeira e de organização administrativa”.

De acordo com Willian Campos, representante do Ministério da Educação (MEC) no Rio de Janeiro, o governo está simpático à proposta da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), que prevê que, dos 18% dos recursos da União destinados ao ensino, 75% sejam repassados às universidades federais. Dentro desse montante, 70% iriam para o fundo de custeio das instituições e 5% para o fundo de expansão.

Leher diz que esses recursos não são suficientes para o desenvolvimento das universidades públicas. “O ideal é o financiamento da universidade a partir de uma fração do Produto Interno Bruto (PIB), mas é preciso que haja um redimensionamento dos gastos do ensino superior”. Hoje, o país gasta muito pouco com a educação, apenas 3,8% do PIB com todo o sistema educacional, uma das menores médias mundiais. Desses 3,8%, a União contribui com 0,7%. “A União tem que aumentar seus gastos educacionais”, argumenta o professor.

Além do dinheiro vindo do orçamento da União, a proposta institucional do MEC, elaborada em agosto deste ano e intitulada Reafirmando os princípios e consolidando diretrizes da reforma da educação superior – Documento II, prevê diferentes formas de financiamento para garantir a autonomia financeira das universidades federais. Inclusive a captação de recursos no setor privado. O Andes é contrário à existência de fundações privadas nas instituições. Já a proposta da Andifes propõe uma regulamentação para a obtenção de recursos junto ao setor privado.

O Documento II propõe ainda uma vinculação da autonomia universitária aos critérios de financiamento e avaliação, levando em consideração a missão da universidade de “contribuir para o desenvolvimento social, econômico, cultural e científico da sociedade, promovendo a inclusão da diversidade étnico-cultural e a redução das desigualdades sociais e regionais do país”. Para os sindicatos, a avaliação externa é caracterizada como uma agressão ao princípio da autonomia. Já Maria Francisca Coelho é enfática ao defender a necessidade da regulamentação: “Eles desconhecem que o acompanhamento e a avaliação das atividades institucionais e individuais devem funcionar como instrumentos de legitimação acadêmica e social de planos, projetos e atividades realizadas, bem como justificadores do investimento público que as viabilizam”, diz. Deste modo, a socióloga defende que a regulamentação do princípio constitucional da autonomia universitária irá contribuir para o desenvolvimento e melhor desempenho da instituição.

Outro detalhe importante é a maneira como será feita essa avaliação. Pela proposta do governo, o setor público avaliará as instituições por meio do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) e da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes). A garantia da manutenção do financiamento deve adequar-se à política de expansão, de qualidade e de inclusão social, metas que devem ser apresentadas no Plano de Desenvolvimento e Gestão (PDG) de cada universidade. A exigência da avaliação vale tanto para as instituições financiadas quase integralmente com recursos públicos, quanto para aquelas que são custeadas pelas mensalidades dos alunos, porque em todos os casos a educação como um bem público deve servir à sociedade. A proposta prevê incentivos e maior autonomia das instituições mais bem avaliadas e acompanhamento, advertências e finalmente sanções, que podem ir até o fechamento, no caso das instituições mal avaliadas.

A experiência das estaduais

Desde 1989, a autonomia é praticada nas universidades estaduais paulistas (Unicamp, USP e Unesp), que recebem um repasse fixo da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), recolhido pelo governo do estado. Inicialmente, o orçamento ficou estabelecido em 8,4%, mas o percentual foi elevado para 9,57% em 1996, sendo a divisão interna desse valor feita pelo Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp).

Segundo a professora Nina Ranieri, secretária-geral da USP, a possibilidade de gestão financeira e orçamentária possibilitou às três universidades paulistas que cada uma encontrasse o seu rumo, do ponto de vista acadêmico e científico, privilegiando linhas de pesquisa, áreas do conhecimento e novos cursos, de acordo com as demandas dos meios em que elas se inserem. Assim, as decisões são tomadas a partir da análise dessas demandas. “Além disso, o fato de ter um orçamento e ter que prestar contas desse orçamento, e de ter várias demandas socias faz com que essas instituições tenham muita responsabilidade. As decisões são tomadas de acordo com as possibilidade e são implementadas na medida do possível. Elas também não podem culpar ninguém caso suas experiênicas não dêem certo, porque a responsabilidade é inteiramente delas”, afirma.

Para Ranieri, que também é autora do livro Autonomia universitária – As universidade públicas e a Constituição de 1988, o exemplo das estaduais paulistas pode ser adotado, com sucesso, pelas federais, “basta conceder orçamentos autônomos e não interferir na administração interna das universidades”. Ela conta que o governo de São Paulo respeita a autonomia das universidades e não interfere no tema, nem mesmo no que diz respeito ao reajuste salarial dos funcionários, que tem sido decidido pelo conselho de reitores.

A pesquisadora critica o fato das propostas apresentadas para a reforma universitária, tanto pelo governo como por diversas entidades, estarem mais focadas em uma situação teórica do que pragmática: “Eu acho que o modelo paulista oferece diretrizes seguras para um modelo autonômo de sucesso. Querer inventar a roda a essa altura, é um pouco complicado. Todas essas propostas poderiam considerar e aproveitar as experiências desses 15 anos”.

Em relação à USP, desde que a autonomia foi implantada, a professora afirma que a universidade conseguiu equacionar vários problemas, com responsabilidade e a partir de um orçamento pré-fixado. “A lição de casa foi feita”, conclui.

Escolha dos dirigentes

Outro tema bastante discutido sobre a questão da autonomia é a eleição de reitores. Atualmente, nas universidades federais, a eleição é feita por consulta a professores, alunos e funcionários. Os três nomes mais votados são enviados ao presidente da República, que nem sempre escolhe aquele que obteve maior número de votos. Com as mudanças propostas pelo governo, o reitor será escolhido diretamente pela comunidade acadêmica. Caberá aos órgãos superiores de cada instituição a escolha do modelo, se paritário, universal ou misto, como ocorre atualmente, em que o voto dos professores tem o peso de 70%, sendo completados pelos 15% referentes aos servidores e 15% para estudantes, conforme a lei em vigor (nº 9.192/95). No voto paritário, professores, estudantes e técnicos-administrativos têm o peso de 1/3 cada. No caso de voto universal, os estudantes têm peso maior, uma vez são utilizados critérios meramente quantitativos, sendo escolhido o candidato que tiver mais votos.

Enquanto o Andes defende o voto paritário, a Andifes prefere que a autonomia garanta à universidade o direito à elaboração de normas próprias para a escolha dos dirigentes. Até mesmo entre as entidades estudantis há grupos que aceitam o modelo de voto paritário enquanto outros reivindicam o voto universal.

Coelho acha que o modelo mais adequado à instituição universitária é o que confere o maior peso percentual aos professores, já que esses são os responsáveis pelo cumprimento das atividades da universidade, de ensino, pesquisa e extensão. “No entanto, se a reforma deixar o modelo em aberto e substituir a legislação em vigor, vamos ter que conviver com vários critérios”, observa.

Na opinião do senador Cristovam Buarque, ex-ministro da Educação, cada universidade deve ser livre para escolher o modelo de eleição. “Seria um problema da universidade”.

Já a professora Nina Ranieri é contra a eleição direta e acredita no sistema atual de escolha vigente na Universidade de São Paulo, onde nem sequer existe consulta à comunidade para a escolha do reitor. Na USP, o Conselho Universitário indica um nome para ser efetivado pelo governador do estado. “Os alunos e funcionários são transitórios, e somente aqueles que têm cargos efetivos é que constituem o corpo permanente da universidade”. Ranieri entende que a eleição direta é necessária no plano político, contituindo-se uma marca dos governos democráticos, mas a universidade não é um Estado, é um órgão técnico, acadêmico, voltado essencialmente à produção e retransmissão do conhecimento”. Deste modo, a professora enfatiza a importância de um certo tipo de qualificação das pessoas que venham a dirigi-la.

Para Buarque, a universidade é uma instituição que não pode ficar subordinada à vontade do governante. O ex-ministro chegou a enviar um projeto de lei para a Casa Civil acabando com a lista tríplice, mas não foi aprovado. “O chefe da Casa Civil disse que o presidente não estava de acordo. Acha que a universidade não deve ter essa liberdade toda”, lamenta.

O que quer dizer, na prática, essa autonomia?

Autonomia administrativa: compreende a não ingerência externa no governo da universidade e a possibilidade de autogoverno.

Autonomia financeira: independência no emprego das verbas no âmbito interno.

Autonomia didática: diz respeito à possibilidade de conduzir sem restrições as atividades de ensino e aprendizado. No Brasil, ainda que, em tese, essa autonomia seja garantida, a aprovação de estatutos, de programas, de títulos, etc. fica na dependência direta de ministérios e secretarias.

Autonomia técnico-científica: refere-se à possibilidade de poder empregar técnicas e elaborar uma ciência adequada à realidade, de viver o pluralismo ideológico, de discutir políticas governamentais de desenvolvimento e apresentar modelos e propostas alternativas.

Autonomia política: permite à universidade determinar sua política de ensino, pesquisa e extensão, dentro do direito de liberdade do pensamento, de livre manifestação de idéias, de exercício crítico dos modelos políticos e da política nacional.

Fonte: WANDERLEY, Luiz Eduardo W. O que é universidade? Ed: Brasiliense, SP, 1983.

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